A Primeira Trilha
Por Manuel Moreno Ruiz Poveda
A memória da gente é misteriosa. Eu não me recordo da primeira vez que fui à piscina, nem à praia, nem à escola, nem ao shopping. Mas me lembro, como se fosse ontem, da primeira vez em que fui à montanha, da primeira trilha. Com cinco anos de idade tudo é grande; imagina uma montanha!? Meus pais eram de acampar, tem fotos deles, muito jovens, numa barraca das antigas, com barras de ferro, em que eu não apareço ainda. E tem outras comigo de fralda e chupeta rolando na barraca.
Tenho uma lembrança muito especial no “Valle de Ordesa”, no “Pirineo Aragonés”, indo com minhas perninhas desde “La Pradera” (onde ficam os carros) até a majestosa cachoeira “Cola de Cavallo” no final do vale. Lógico, nas mãos de meus pais. Nas paradas de descanso, eu insistia em ficar na mesma pedra que minha mãe estava, bem colado, e ela reclamava: “Pero Manolito, no hay campo?!” (Em tradução livre: “Mas Manolito, não tem campo não?!”). Acho que sair da mesma pedra foi o primeiro passo para a emancipação. Fomos os três juntos até a cachoeira, de repente meu pai falou que ele ia voltar por outro caminho e que não podíamos ir com ele porque era perigoso. Mas como assim?!
Meu pai ia nos largar lá para fazer um caminho perigoso!? Até o nome assustava: “La Senda de Cazadores” (“A Trilha dos Caçadores”). Eu já imaginava meu pai rodeado de lobos. Não parei de falar de tanta emoção nos 8 km até o estacionamento; a coitada da minha mãe chegou a me pedir silêncio “Manolito, cállate un poquito hijo!” (“Manolito, cala a boca um pouquinho filho!”). Chegamos a “La Pradera” antes que meu pai. A espera foi eterna. Eu só ficava olhando para cima os impressionantes paredões por onde vai a “Senda de Cazadores”. E aí veio ele, sorrindo, contando as maravilhosas vistas ao “Monte Perdido (3.355 m)” e como foi doída a íngreme descida. Nesse dia pensei: “Um dia farei a Trilha dos Caçadores como meu pai”. Disso faz 35 anos e a lembrança está vívida. Nesse tempo todo tive tempo de fazer essa trilha e muitas outras que já esqueci. A última vez que subi com meu pai ao Pico Aneto (3.404 m) eu tinha 16 anos.
A partir daí comecei a caminhar “sozinho” com meus irmãos montanheiros da faculdade de engenharia florestal. Lembro quando, com 21 anos, falei para meu pai que ia subir o Monte Perdido (que ele não conseguiu subir, ainda), do orgulho e surpresa na voz dele: “Cuidado con La Escupidera!” (uma passagem de gelo onde, todo ano, o Monte Perdido “cospe” algum escolhido para seu fim).
Depois dessa, vieram o Posets (3.369 m), o Toubkal (4.167 m), o Almanzor (2.591 m), o Austria (5.320 m) e outras… mas da primeira vez não esqueço! É algo que levo dentro da pele, bem fundo, que me acompanhará até o fim. Algo que nos faz montanheiros: procurar novos desafios, algo mais difícil, mais alto, fazer um novo caminho, tentar chegar ao final… apesar de tudo.
Agradeço ao meu pai por me levar às montanhas desde pequeno, despertando esta conexão e paixão que me levou a seguir seus passos, que atravessou o tempo e as fronteiras. Vários anos depois e milhares de quilômetros de onde tudo começou, reconectei-me às montanhas e ao meu pai, graças ao GPM. Minha gratidão por esses momentos e outros que ainda estão por vir!
Manuel Moreno Ruiz Poveda, 11/07/2022
Engenheiro Florestal, nascido em Madri (Espanha) em 1982 e brasileiro naturalizado. Formado no Curso Básico de Montanhismo em 2022 e associado ao GPM.